Refetindo sobre o desafio de organizar a CIRS - Conferência Internacional sobre Redes Sociais (um evento que ocorrerá na constelação de atividades da CI-CI 2010 - Conferência Internacional de Cidades Inovadoras: CIETEP Curitiba 10-13 de março de 2010), resolvi escrever este artigo.
O desafio, para mim, não é propriamente organizar uma conferência, coisa que venho fazendo há mais ou menos uns trinta anos. Ainda mais porquanto se trata de um evento relativamente pequeno (previsto para um público selecionado de aproximadamente mil pessoas). O desafio é fazer isso - pelo menos a partir de certas condições iniciais dadas - de modo distribuído, ou seja, com pouquíssima centralização.
É claro que partimos de condições iniciais muito favoráveis: palestrantes internacionais, infra-estrutura e logística foram aproveitados da CI-CI 2010. A retribuição da CIRS será mais inscritos na CI-CI 2010 (todos os que se conectaram à Escola-de-Redes depois de 12/11/09 deverão fazer sua inscrição na CI-CI 2010 para participar da CIRS), além, é claro, de atrair gente que está envolvida em uma reflexão de vanguarda sobre redes sociais. É um jogo ganha-ganha.
Por outro lado, enquanto a CI-CI 2010 está sendo organizada de modo predominantemente centralizado, com um comitê organizador - do qual faço parte, como articulador do Comitê Científico - instalado há quase um ano e um engajamento institucional forte na sua promoção, financiamento, apoio infra-estrutural e logístico e divulgação, a CIRS - partindo das condições iniciais previamente reunidas que mencionei acima - não tem nada disso.
A CIRS não tem um cartaz, um folheto, um site oficial, nem mesmo uma marca (logo). E não tem verba para fazer qualquer coisa, sequer um crachá e uma pasta para entregar ao participante.
A CIRS não foi promovida por nenhuma instituição ou entidade. A idéia surgiu de conversas entre pessoas conectadas à Escola-de-Redes (agora com 3.159 conectados). E por isso a CIRS não está sendo promovida pela Escola-de-Redes (já que a E=R não tem nenhum mecanismo diretivo que possa tomar decisões em nome coletivo) e sim por pessoas conectadas à Escola-de-Redes. Ou seja, os seus promotores e realizadores são, afinal, as pessoas que decidiram propô-la e que decidiram ajudar a promovê-la e realizá-la. Hoje já temos um grupo na E=R com mais de 80 pessoas dispostas a fazer isso. E já temos centenas de outras pessoas fazendo isso na prática, por sua própria iniciativa (ainda que a maioria destas não esteja formalmente nesse grupo, nem mesmo pertença à Escola-de-Redes). E alcançamos, neste momento em que escrevo, 316 pré-inscritos, faltando ainda dois meses para o evento.
A idéia e sobretudo a prática de realizar a CIRS em rede, de modo distribuído, foi, pelo menos para mim, inédita. A idéia é simples, mas desconcertante para quem está acostumado a promover eventos. Qualquer pessoa - respeitadas as condições iniciais - pode se apropriar da CIRS e promovê-la como se fosse sua: pode inventar uma logo, publicar um folheto ou um cartaz, fazer um banner e pendurá-lo onde bem entender, captar patrocínio para divulgação ou prestação de outros serviços etc. Qualquer empresa ou organização pode associar sua marca à CIRS, divulgando-a nas peças de comunicação que veicular. E nada disso precisa ser combinado como ninguém, nem mesmo relatado para algum centro logístico ou coordenador.
Ou seja, nada da tal imprescindível "identidade visual", nada de estratégia (pensada e aplicada top down), nada de coordenação operacional prévia. Nada.
E também nada de facilitação centralizada de meios de transporte e hospedagem. Cada qual que se vire. Sozinho? Ah!... Parece que não: as pessoas vão se organizando bottom up - aqui na E=R e alhures - para participar da CIRS: vão organizar caravanas, vão encontrar passagens aéreas mais baratas, vão arranjar alternativas de hospedagem...
Além do processo distribuído de divulgação e organização da participação no evento, a parte mais significativa da conferência será... uma desconferência - o Simpósio da Escola-de-Redes, organizado nos moldes de um Open Space, sem pauta prévia, sem apresentação de trabalhos selecionados e sem palestrantes convidados ou contratados. A pauta emergirá quando as pessoas chegarem no local (este sim, já reservado).
É claro que tudo isso está sendo muito facilitado pelo fato da CIRS ocorrer na constelação da CI-CI 2010, que já se preocupou com algumas dessas coisas que dizem respeito à logística e à infra-estrutura. Mas não com todas. E haverá uma parcela ponderável de pessoas que participará da CIRS mas não estará inscrita na CI-CI 2010. Pessoas que vão retribuir com a sua importantíssima presença e não com a taxa de inscrição. E pessoas que vão se auto-organizar.
Refletindo sobre tudo isso cheguei à conclusão de que esta experiência de organizar a CIRS de modo distribuído é um verdadeiro programa de aprendizagem em netweaving. É a melhor coisa que poderia acontecer com esta escola-não-escola chamada Escola-de-Redes.
Mas também percebi o tamanho dos obstáculos. Organizar as coisas de modo distribuído é quase uma ofensa aos que se organizam de modo centralizado. Organizar as coisas de modo distribuído quebra paradigmas. A mudança é mais profunda do que em geral imaginamos.
Mas será que, em uma sociedade em rede, tudo não deveria ser assim mesmo?
Com essa pergunta entramos no núcleo da presente reflexão. O que segue aqui é uma opinião pessoal. Ninguém precisa concordar com ela para participar da CIRS ou se conectar à Escola-de-Redes.
Organizações hierárquicas, quando promovem encontros, têm sempre um objetivo institucional estabelecido pelos seus chefes, ou, pelo menos, traçado com a sua concordância. Tal objetivo passa, não raro, pela promoção desses chefes e pela satisfação de seus interesses. Às vezes os interesses são claramente econômicos, mas em boa parte dos casos são de outra natureza. Visam aumentar a influência política ou a fama dos chamados (e quase sempre auto-intitulados) "líderes".
Então a organização piramidal trabalha para o cume. Ela trabalha para o centro, para o chefe, para o líder. E as pessoas que trabalham em geral não aparecem, pois seu papel precípuo é o de fazer o chefe aparecer. Aí o chefe fica contente e mantém tais pessoas na sua função (empregadas ou contratadas). Se o chefe ficar muito contente com o resultado, pode até retribuir com uma promoção do "colaborador" que lhe fez tão bem as vontades.
Ocorre que quando um conjunto de pessoas aplicam seus talentos para promover uma atividade, todas devem aparecer. Prá quê? Ora, para poder ser reconhecidas, para poder compartilhar, aumentar e desenvolver esses talentos. Essa é uma característica central daquele tipo de inteligência tipicamente humana de que falava Humberto Maturana: uma inteligência que cresce e se realiza com a troca, com o jogo ganha-ganha, com a colaboração. Uma inteligência colaborativa.
Se as pessoas abrem mão de fazer isso em prol da promoção de outras pessoas que estão acima delas na estrutura hierárquica, elas estão renunciando, em alguma medida, a exercer suas qualidades propriamente humanas. O diabo é que os funcionários burocráticos e outros empregados ou prestadores de serviços em organizações hierárquicas já introjetaram tão fundo as idéias que sustentam tais práticas, que o hábito não de servir mas de ser serviçal se instalou no andar de baixo da sua consciência e emerge como uma pulsão. Freqüentemente eles se escondem para promover seus superiores, tendo medo, inclusive, de proferir uma opinião própria em uma reunião, escrever um artigo em um blog, dar um entrevista ou gravar um vídeo para um meio de comunicação. Mas essas pessoas até se orgulham de habitar a penunbra e se vestir de cinza, adotando a servidão voluntária e, com isso, violando sua própria humanidade ou, no mínimo, deixando de explorá-la e desenvolvê-la como poderiam.
Alguns fazem isso conscientemente, em troca do emprego ou da contratação. Argumentam que se não obedecerem e fizerem a vontade dos chefes, perderão a remuneração sem a qual não terão como viver. Mas dá no mesmo. Se, para sobreviver, uma pessoa precisa castrar suas potencialidades, então tal sobrevivência não poderá ser digna. Um trabalho que deixe de promover o desenvolvimento humano de quem trabalha não pode ser digno.
Os chefes, por sua vez - como aquele senhor de escravo escravo do escravo a que se referia Hegel, com outros termos - também estão aprisionados neste círculo desumanizante. Estão intoxicados pelas ideologias do comando-e-controle e do liderancismo, segundo as quais se não for assim as coisas não funcionam. De que alguém tem sempre que liderar - quer dizer, deixando a frescura de lado e traduzindo em bom português: mandar nos outros - para que uma ação possa ser realizada a contento. Por isso não se adaptam à cultura e à prática de rede, onde não é possível mandar alguém fazer alguma coisa contra a sua vontade.
É por isso que organizar as coisas em rede distribuída é um desafio tremendo em um mundo ainda infestado, em grande parte, por organizações hierárquicas.
Quando organizações hierárquicas se interessam por redes, quase sempre esse interesse é instrumental. Querem usar as redes para obter alguma coisa que fortaleça os seus objetivos e a manutenção das suas estruturas hierárquicas. Seus chefes - quando mais ilustrados - acham que usando as "tecnologias de rede" vão conseguir aumentar sua influência, seu poder ou, quem sabe, suas vendas (daí todo esse súbito interesse cretino pelo tal "marketing viral", de resto uma vigarice).
As organizações hierárquicas - em termos do ser coletivo que se forma, não, é claro, das pessoas que as integram - não vêem as redes como fim - como uma nova forma de interação propriamente humana ou humanizada pelo social - e sim como meio para alguma coisa não-humana. Sim, organizações hierárquicas de seres humanos geram seres não-humanos. A afirmação é forte, mas não há como dizer de outro modo se quisermos ir ao coração do problema. Entenda-se bem: as pessoas continuarão sendo humanas, mas o ser coletivo que se forma não será, posto que não será 'social' (naquele especialíssimo sentido que Maturana empresta ao termo).
Mas então, o que se propõe?
Cada um que percebe esse problema que proponha o que achar melhor para resolver o problema. Não há uma solução. Quando houver uma solução ela será o resultado de uma confluência de miríades de inputs.
Se não é possível mudar de uma vez a prática das organizações hierárquicas, então deverá haver uma transição. Uma transição da organização hierárquica para a organização em rede.
No caso específico que suscitou a presente reflexão talvez se pudesse propor um caminho mais ou menos assim:
Todos os que promovem um evento e que o "compram" como seu devem poder ser conhecidos e reconhecidos por isso. Para tanto, seus nomes devem ser divulgados com destaque em todo o processo de preparação e realização do evento e não apenas os nomes dos chefes, líderes ou coordenadores. Eles não devem ser tratados como "colaboradores" (a quem se faz um agradecimento formal no encerramento dos encontros) e sim como co-autores (se de fato o forem, quer dizer, se assumirem tal papel).
Temos que fazer o contrário do que diz aquele velho adágio sindical autoritário: "Manda quem banca".
Todos esses, aos quais me referi acima, devem, se quiserem, expressar por quaisquer meios suas opiniões sobre os temas que estarão em discussão no evento e não apenas servir de escada para a divulgação das opiniões de alguns, como as daqueles que pagam seus salários ou suas remunerações. Tais opiniões devem ser veiculadas nos meios de comunicação utilizados para convocar, preparar ou realizar o evento.
Isso já é possível. Sim, já é possível. Adotando orientações como essas não teremos eventos menores ou menos "participativos". Ao contrário, como, espero, veremos com a CIRS.
É claro que um evento determinado a esta altura é apenas gancho ou um motivo para a reflexão. Tudo que acontece - qualquer processo, qualquer estruturação adotada, qualquer dinâmica desencadeada em uma organização - é um evento.
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Post do Prof. Augusto de Franco na Escola de Redes, em 10 de janeiro de 2010.
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O desafio, para mim, não é propriamente organizar uma conferência, coisa que venho fazendo há mais ou menos uns trinta anos. Ainda mais porquanto se trata de um evento relativamente pequeno (previsto para um público selecionado de aproximadamente mil pessoas). O desafio é fazer isso - pelo menos a partir de certas condições iniciais dadas - de modo distribuído, ou seja, com pouquíssima centralização.
É claro que partimos de condições iniciais muito favoráveis: palestrantes internacionais, infra-estrutura e logística foram aproveitados da CI-CI 2010. A retribuição da CIRS será mais inscritos na CI-CI 2010 (todos os que se conectaram à Escola-de-Redes depois de 12/11/09 deverão fazer sua inscrição na CI-CI 2010 para participar da CIRS), além, é claro, de atrair gente que está envolvida em uma reflexão de vanguarda sobre redes sociais. É um jogo ganha-ganha.
Por outro lado, enquanto a CI-CI 2010 está sendo organizada de modo predominantemente centralizado, com um comitê organizador - do qual faço parte, como articulador do Comitê Científico - instalado há quase um ano e um engajamento institucional forte na sua promoção, financiamento, apoio infra-estrutural e logístico e divulgação, a CIRS - partindo das condições iniciais previamente reunidas que mencionei acima - não tem nada disso.
A CIRS não tem um cartaz, um folheto, um site oficial, nem mesmo uma marca (logo). E não tem verba para fazer qualquer coisa, sequer um crachá e uma pasta para entregar ao participante.
A CIRS não foi promovida por nenhuma instituição ou entidade. A idéia surgiu de conversas entre pessoas conectadas à Escola-de-Redes (agora com 3.159 conectados). E por isso a CIRS não está sendo promovida pela Escola-de-Redes (já que a E=R não tem nenhum mecanismo diretivo que possa tomar decisões em nome coletivo) e sim por pessoas conectadas à Escola-de-Redes. Ou seja, os seus promotores e realizadores são, afinal, as pessoas que decidiram propô-la e que decidiram ajudar a promovê-la e realizá-la. Hoje já temos um grupo na E=R com mais de 80 pessoas dispostas a fazer isso. E já temos centenas de outras pessoas fazendo isso na prática, por sua própria iniciativa (ainda que a maioria destas não esteja formalmente nesse grupo, nem mesmo pertença à Escola-de-Redes). E alcançamos, neste momento em que escrevo, 316 pré-inscritos, faltando ainda dois meses para o evento.
A idéia e sobretudo a prática de realizar a CIRS em rede, de modo distribuído, foi, pelo menos para mim, inédita. A idéia é simples, mas desconcertante para quem está acostumado a promover eventos. Qualquer pessoa - respeitadas as condições iniciais - pode se apropriar da CIRS e promovê-la como se fosse sua: pode inventar uma logo, publicar um folheto ou um cartaz, fazer um banner e pendurá-lo onde bem entender, captar patrocínio para divulgação ou prestação de outros serviços etc. Qualquer empresa ou organização pode associar sua marca à CIRS, divulgando-a nas peças de comunicação que veicular. E nada disso precisa ser combinado como ninguém, nem mesmo relatado para algum centro logístico ou coordenador.
Ou seja, nada da tal imprescindível "identidade visual", nada de estratégia (pensada e aplicada top down), nada de coordenação operacional prévia. Nada.
E também nada de facilitação centralizada de meios de transporte e hospedagem. Cada qual que se vire. Sozinho? Ah!... Parece que não: as pessoas vão se organizando bottom up - aqui na E=R e alhures - para participar da CIRS: vão organizar caravanas, vão encontrar passagens aéreas mais baratas, vão arranjar alternativas de hospedagem...
Além do processo distribuído de divulgação e organização da participação no evento, a parte mais significativa da conferência será... uma desconferência - o Simpósio da Escola-de-Redes, organizado nos moldes de um Open Space, sem pauta prévia, sem apresentação de trabalhos selecionados e sem palestrantes convidados ou contratados. A pauta emergirá quando as pessoas chegarem no local (este sim, já reservado).
É claro que tudo isso está sendo muito facilitado pelo fato da CIRS ocorrer na constelação da CI-CI 2010, que já se preocupou com algumas dessas coisas que dizem respeito à logística e à infra-estrutura. Mas não com todas. E haverá uma parcela ponderável de pessoas que participará da CIRS mas não estará inscrita na CI-CI 2010. Pessoas que vão retribuir com a sua importantíssima presença e não com a taxa de inscrição. E pessoas que vão se auto-organizar.
Refletindo sobre tudo isso cheguei à conclusão de que esta experiência de organizar a CIRS de modo distribuído é um verdadeiro programa de aprendizagem em netweaving. É a melhor coisa que poderia acontecer com esta escola-não-escola chamada Escola-de-Redes.
Mas também percebi o tamanho dos obstáculos. Organizar as coisas de modo distribuído é quase uma ofensa aos que se organizam de modo centralizado. Organizar as coisas de modo distribuído quebra paradigmas. A mudança é mais profunda do que em geral imaginamos.
Mas será que, em uma sociedade em rede, tudo não deveria ser assim mesmo?
Com essa pergunta entramos no núcleo da presente reflexão. O que segue aqui é uma opinião pessoal. Ninguém precisa concordar com ela para participar da CIRS ou se conectar à Escola-de-Redes.
Organizações hierárquicas, quando promovem encontros, têm sempre um objetivo institucional estabelecido pelos seus chefes, ou, pelo menos, traçado com a sua concordância. Tal objetivo passa, não raro, pela promoção desses chefes e pela satisfação de seus interesses. Às vezes os interesses são claramente econômicos, mas em boa parte dos casos são de outra natureza. Visam aumentar a influência política ou a fama dos chamados (e quase sempre auto-intitulados) "líderes".
Então a organização piramidal trabalha para o cume. Ela trabalha para o centro, para o chefe, para o líder. E as pessoas que trabalham em geral não aparecem, pois seu papel precípuo é o de fazer o chefe aparecer. Aí o chefe fica contente e mantém tais pessoas na sua função (empregadas ou contratadas). Se o chefe ficar muito contente com o resultado, pode até retribuir com uma promoção do "colaborador" que lhe fez tão bem as vontades.
Ocorre que quando um conjunto de pessoas aplicam seus talentos para promover uma atividade, todas devem aparecer. Prá quê? Ora, para poder ser reconhecidas, para poder compartilhar, aumentar e desenvolver esses talentos. Essa é uma característica central daquele tipo de inteligência tipicamente humana de que falava Humberto Maturana: uma inteligência que cresce e se realiza com a troca, com o jogo ganha-ganha, com a colaboração. Uma inteligência colaborativa.
Se as pessoas abrem mão de fazer isso em prol da promoção de outras pessoas que estão acima delas na estrutura hierárquica, elas estão renunciando, em alguma medida, a exercer suas qualidades propriamente humanas. O diabo é que os funcionários burocráticos e outros empregados ou prestadores de serviços em organizações hierárquicas já introjetaram tão fundo as idéias que sustentam tais práticas, que o hábito não de servir mas de ser serviçal se instalou no andar de baixo da sua consciência e emerge como uma pulsão. Freqüentemente eles se escondem para promover seus superiores, tendo medo, inclusive, de proferir uma opinião própria em uma reunião, escrever um artigo em um blog, dar um entrevista ou gravar um vídeo para um meio de comunicação. Mas essas pessoas até se orgulham de habitar a penunbra e se vestir de cinza, adotando a servidão voluntária e, com isso, violando sua própria humanidade ou, no mínimo, deixando de explorá-la e desenvolvê-la como poderiam.
Alguns fazem isso conscientemente, em troca do emprego ou da contratação. Argumentam que se não obedecerem e fizerem a vontade dos chefes, perderão a remuneração sem a qual não terão como viver. Mas dá no mesmo. Se, para sobreviver, uma pessoa precisa castrar suas potencialidades, então tal sobrevivência não poderá ser digna. Um trabalho que deixe de promover o desenvolvimento humano de quem trabalha não pode ser digno.
Os chefes, por sua vez - como aquele senhor de escravo escravo do escravo a que se referia Hegel, com outros termos - também estão aprisionados neste círculo desumanizante. Estão intoxicados pelas ideologias do comando-e-controle e do liderancismo, segundo as quais se não for assim as coisas não funcionam. De que alguém tem sempre que liderar - quer dizer, deixando a frescura de lado e traduzindo em bom português: mandar nos outros - para que uma ação possa ser realizada a contento. Por isso não se adaptam à cultura e à prática de rede, onde não é possível mandar alguém fazer alguma coisa contra a sua vontade.
É por isso que organizar as coisas em rede distribuída é um desafio tremendo em um mundo ainda infestado, em grande parte, por organizações hierárquicas.
Quando organizações hierárquicas se interessam por redes, quase sempre esse interesse é instrumental. Querem usar as redes para obter alguma coisa que fortaleça os seus objetivos e a manutenção das suas estruturas hierárquicas. Seus chefes - quando mais ilustrados - acham que usando as "tecnologias de rede" vão conseguir aumentar sua influência, seu poder ou, quem sabe, suas vendas (daí todo esse súbito interesse cretino pelo tal "marketing viral", de resto uma vigarice).
As organizações hierárquicas - em termos do ser coletivo que se forma, não, é claro, das pessoas que as integram - não vêem as redes como fim - como uma nova forma de interação propriamente humana ou humanizada pelo social - e sim como meio para alguma coisa não-humana. Sim, organizações hierárquicas de seres humanos geram seres não-humanos. A afirmação é forte, mas não há como dizer de outro modo se quisermos ir ao coração do problema. Entenda-se bem: as pessoas continuarão sendo humanas, mas o ser coletivo que se forma não será, posto que não será 'social' (naquele especialíssimo sentido que Maturana empresta ao termo).
Mas então, o que se propõe?
Cada um que percebe esse problema que proponha o que achar melhor para resolver o problema. Não há uma solução. Quando houver uma solução ela será o resultado de uma confluência de miríades de inputs.
Se não é possível mudar de uma vez a prática das organizações hierárquicas, então deverá haver uma transição. Uma transição da organização hierárquica para a organização em rede.
No caso específico que suscitou a presente reflexão talvez se pudesse propor um caminho mais ou menos assim:
Todos os que promovem um evento e que o "compram" como seu devem poder ser conhecidos e reconhecidos por isso. Para tanto, seus nomes devem ser divulgados com destaque em todo o processo de preparação e realização do evento e não apenas os nomes dos chefes, líderes ou coordenadores. Eles não devem ser tratados como "colaboradores" (a quem se faz um agradecimento formal no encerramento dos encontros) e sim como co-autores (se de fato o forem, quer dizer, se assumirem tal papel).
Temos que fazer o contrário do que diz aquele velho adágio sindical autoritário: "Manda quem banca".
Todos esses, aos quais me referi acima, devem, se quiserem, expressar por quaisquer meios suas opiniões sobre os temas que estarão em discussão no evento e não apenas servir de escada para a divulgação das opiniões de alguns, como as daqueles que pagam seus salários ou suas remunerações. Tais opiniões devem ser veiculadas nos meios de comunicação utilizados para convocar, preparar ou realizar o evento.
Isso já é possível. Sim, já é possível. Adotando orientações como essas não teremos eventos menores ou menos "participativos". Ao contrário, como, espero, veremos com a CIRS.
É claro que um evento determinado a esta altura é apenas gancho ou um motivo para a reflexão. Tudo que acontece - qualquer processo, qualquer estruturação adotada, qualquer dinâmica desencadeada em uma organização - é um evento.
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Post do Prof. Augusto de Franco na Escola de Redes, em 10 de janeiro de 2010.
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