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O martírio das criaturas:
- O homicídio nas vielas mais escuras,
- O ferido que a hostil gleba atra escarva,
- O último solilóquio dos suicidas —
E eu sinto a dor de todas essas vidas
-- Augusto dos Anjos --
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O martírio das criaturas:
- O homicídio nas vielas mais escuras,
- O ferido que a hostil gleba atra escarva,
- O último solilóquio dos suicidas —
E eu sinto a dor de todas essas vidas
-- Augusto dos Anjos --
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21 de março é o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, instituído a partir de uma tragédia: o massacre de Shapeville, na África do Sul, em 1960. Na África do Sul, marca também o Dia Nacional dos Direitos Humanos, criado por Nelson Mandela, em 1996. Na mesma data, em 1997, o Brasil incluiu Zumbi dos Palmares na galeria de nossos heróis nacionais.
Desde então, o racismo não acabou, o ódio e a intolerância ainda massacram muita gente, muitos povos. Mas talvez se possa dizer que caminhamos muito, tanto lá quanto cá. Aqui, agora, o que interessa saber é: quanto mais temos ainda que caminhar?
Dias antes do carnaval no Rio de Janeiro, houve polêmica entre a escola de samba Unidos do Viradouro e a Federação Israelita do estado. A questão: seria ou não possível desfilar um carro alegórico retratando o Holocausto na II Guerra da Europa (ou mundial, como dizem). O carro traria, segundo imagens e informações veiculadas, a escultura de uma pilha de corpos mortos, esquálidos, nus, da mesma maneira que já vimos em imagens dos campos de concentração. Um detalhe provocou maior debate: sobre estes corpos viria a figura de um folião fantasiado de Hitler. Pelo que li e ouvi, isso foi o que mais desagradou parte da comunidade judaica, em nome de quem o presidente da Federação falava. Um Hitler vivo, sambando sobre os corpos.
Qualquer um pode imaginar a cena, que o Judiciário, por solicitação da Federação Israelita, impediu de vir a público. Qualquer um compreende o que simbolizava: uma parte cruel da história da humanidade. Já vimos suas
imagens. Há museus, filmes, exposições, narrativas diversas à disposição. Não houve controvérsia, ao menos de forma explícita, sobre a dramaticidade do que simbolizava. Ponto para nós!
Diga-se que a decisão de recorrer à Justiça foi precedida, segundo veiculado nos jornais e nas TVs, por um processo de negociação que incluiu diálogo direto entre o carnavalesco e a presidência da escola de samba com a Federação; o envio de carta do presidente da Federação à escola; a veiculação midiática do pedido de suspensão da alegoria e, ao final, o recurso à Justiça.
Tomada a decisão, proibida a alegoria, o carnavalesco veio a público em prantos, reconhecendo a derrota. Cenas dramáticas de destruição do carro alegórico – esculturas de corpos mortos nus e esquálidos sendo arrancadas com violência da estrutura de ferro – chocaram quase tanto quanto seu desfile carnavalesco talvez o fizesse.
Censura e liberdade de expressão
A seqüência trouxe uma denúncia de censura, com o carnavalesco triste e inconformado, declarando sua indignação e idéia de outro carro alegórico que representaria a liberdade de expressão e o repúdio à censura. Muitos comentários de especialistas e não-especialistas, muitas cartas de leitores(as), muitos protestos de ambos os lados. E, de certa forma, muita razão.
Não vou comentar os ataques explicitamente racistas (minoritários), surfando exuberantes em vários protestos, pois este é o pano de fundo: num país racista, ninguém está protegido; judeus e judias, apesar da pele clara, não
estão protegidos(as). E certamente muitos(as) poderão vir a público contar os ataques que ainda sofrem nestes anos pós-Holocausto.
O racismo é a realização da crueldade e da violência profundas. Dias antes da polêmica carnavalesca, um jovem branco de 17 anos invadiu uma comunidade negra na África do Sul e, atirando a esmo com um rifle, matou quatro pessoas, entre elas um bebê. Lá, outro escândalo racista recente, de crueldade e sevícia de estudantes universitários brancos contra quatro serventes negras de uma universidade, provoca mobilização nacional. Nos
Estados Unidos, o acirramento da disputa eleitoral utiliza o medo como ferramenta de ataque ao candidato negro Barack Obama. Racismo não acaba por decreto. Ele requer revisão da história, debates, reflexões, punições,
aproximações, democracia, justiça, eqüidade e muito mais, a cada dia.
Não vou comentar todo o amplo espectro que se abre ao debate da liberdade de expressão trazido pela polêmica do carnaval 2008. A liberdade é uma conquista que galgamos a cada dia. Mas é preciso reconhecer que num país racista, sexista, classista, lesbofóbico e homofóbico, desigual ao extremo, ela não acontece só porque a classe média branca heterossexista controla os meios de produção. Reconheçamos que, até o momento, ela não se realizou entre nós. Mas lutamos por ela, especialmente nós, que integramos os grupos
subjugados.
Quanto ao debate carnavalesco, considero verdadeira a afirmação de que houve censura (fundamentada em decisão judicial, amparada na lei, portanto). E mais, esta censura respondeu a uma demanda legítima de um grupo que se considerava atingido. Considero também justas e aceitáveis as contraposições que afirmavam que o gesto de trazer as dores de um povo ao carnaval não significa, necessariamente, um desrespeito – e muitos citaram o povo negro e seu Holocausto, a escravidão transatlântica. Considero também que o carnavalesco da escola de samba Unidos do Viradouro não apresentou qualquer elemento que nos permitisse afirmar, ao criar o carro, que estava mal-intencionado ou movido por anti-semitismo. Ao contrário.
Mas, de volta aos significados do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, considero urgente a reflexão de um aspecto: a censura à voz de judeus e judias que se sentiram violentados(as). Devemos
entender o que está em jogo, quando os debates quase tornaram irrelevante a voz dos(as) que se pronunciaram primeiro; quase esqueceram da dor que diferentes mulheres e homens, de diferentes idades, neste início do século
21, sentiam diante da possibilidade alegórica do Holocausto carnavalesco.
Acredito ter sido em nome do presente, da necessidade de reflexão urgente, que a Federação Israelita se pronunciou. Da atualidade de parte da comunidade judaica do Rio de Janeiro (e não só dela). E, principalmente, em nome da caminhada que nos devemos em direção ao futuro. Um futuro capaz de fazer com que censura queira somente dizer limite para uma sociedade que acredita que vale tudo. Limite descrito como sinônimo de ética. De respeito. De abertura para o outro.
A dor narrada por minha colega de trabalho em Criola (que é judia) não trazia imagens do passado. Ela não esteve lá. Falava de sentimentos de agora. De uma lição que precisamos aprender em nome de algo além do consumo desenfreado, midiático e hedonista da dor dos outros, como descreveu, em ótimo livro, Susan Sontag.
E isto vale para o Brasil, para a África do Sul, para os Estados Unidos, para o mundo. É sempre bom nos perguntarmos se foi ou não o racismo que fez com que vozes como a de minha colega de trabalho, do presidente da Federação Israelita e de muitos(as) outros(as) judeus e judias tenham sido desprezadas por uma parte significativa das pessoas de boa intenção. Assim, talvez, possamos (ou devamos) compreender e expandir os significados do 21 de março por todos os dias.
Jurema Werneck
Coordenadora de Criola
Publicado em 7/3/2008.
fonte: IBASE
http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=2240
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Desde então, o racismo não acabou, o ódio e a intolerância ainda massacram muita gente, muitos povos. Mas talvez se possa dizer que caminhamos muito, tanto lá quanto cá. Aqui, agora, o que interessa saber é: quanto mais temos ainda que caminhar?
Dias antes do carnaval no Rio de Janeiro, houve polêmica entre a escola de samba Unidos do Viradouro e a Federação Israelita do estado. A questão: seria ou não possível desfilar um carro alegórico retratando o Holocausto na II Guerra da Europa (ou mundial, como dizem). O carro traria, segundo imagens e informações veiculadas, a escultura de uma pilha de corpos mortos, esquálidos, nus, da mesma maneira que já vimos em imagens dos campos de concentração. Um detalhe provocou maior debate: sobre estes corpos viria a figura de um folião fantasiado de Hitler. Pelo que li e ouvi, isso foi o que mais desagradou parte da comunidade judaica, em nome de quem o presidente da Federação falava. Um Hitler vivo, sambando sobre os corpos.
Qualquer um pode imaginar a cena, que o Judiciário, por solicitação da Federação Israelita, impediu de vir a público. Qualquer um compreende o que simbolizava: uma parte cruel da história da humanidade. Já vimos suas
imagens. Há museus, filmes, exposições, narrativas diversas à disposição. Não houve controvérsia, ao menos de forma explícita, sobre a dramaticidade do que simbolizava. Ponto para nós!
Diga-se que a decisão de recorrer à Justiça foi precedida, segundo veiculado nos jornais e nas TVs, por um processo de negociação que incluiu diálogo direto entre o carnavalesco e a presidência da escola de samba com a Federação; o envio de carta do presidente da Federação à escola; a veiculação midiática do pedido de suspensão da alegoria e, ao final, o recurso à Justiça.
Tomada a decisão, proibida a alegoria, o carnavalesco veio a público em prantos, reconhecendo a derrota. Cenas dramáticas de destruição do carro alegórico – esculturas de corpos mortos nus e esquálidos sendo arrancadas com violência da estrutura de ferro – chocaram quase tanto quanto seu desfile carnavalesco talvez o fizesse.
Censura e liberdade de expressão
A seqüência trouxe uma denúncia de censura, com o carnavalesco triste e inconformado, declarando sua indignação e idéia de outro carro alegórico que representaria a liberdade de expressão e o repúdio à censura. Muitos comentários de especialistas e não-especialistas, muitas cartas de leitores(as), muitos protestos de ambos os lados. E, de certa forma, muita razão.
Não vou comentar os ataques explicitamente racistas (minoritários), surfando exuberantes em vários protestos, pois este é o pano de fundo: num país racista, ninguém está protegido; judeus e judias, apesar da pele clara, não
estão protegidos(as). E certamente muitos(as) poderão vir a público contar os ataques que ainda sofrem nestes anos pós-Holocausto.
O racismo é a realização da crueldade e da violência profundas. Dias antes da polêmica carnavalesca, um jovem branco de 17 anos invadiu uma comunidade negra na África do Sul e, atirando a esmo com um rifle, matou quatro pessoas, entre elas um bebê. Lá, outro escândalo racista recente, de crueldade e sevícia de estudantes universitários brancos contra quatro serventes negras de uma universidade, provoca mobilização nacional. Nos
Estados Unidos, o acirramento da disputa eleitoral utiliza o medo como ferramenta de ataque ao candidato negro Barack Obama. Racismo não acaba por decreto. Ele requer revisão da história, debates, reflexões, punições,
aproximações, democracia, justiça, eqüidade e muito mais, a cada dia.
Não vou comentar todo o amplo espectro que se abre ao debate da liberdade de expressão trazido pela polêmica do carnaval 2008. A liberdade é uma conquista que galgamos a cada dia. Mas é preciso reconhecer que num país racista, sexista, classista, lesbofóbico e homofóbico, desigual ao extremo, ela não acontece só porque a classe média branca heterossexista controla os meios de produção. Reconheçamos que, até o momento, ela não se realizou entre nós. Mas lutamos por ela, especialmente nós, que integramos os grupos
subjugados.
Quanto ao debate carnavalesco, considero verdadeira a afirmação de que houve censura (fundamentada em decisão judicial, amparada na lei, portanto). E mais, esta censura respondeu a uma demanda legítima de um grupo que se considerava atingido. Considero também justas e aceitáveis as contraposições que afirmavam que o gesto de trazer as dores de um povo ao carnaval não significa, necessariamente, um desrespeito – e muitos citaram o povo negro e seu Holocausto, a escravidão transatlântica. Considero também que o carnavalesco da escola de samba Unidos do Viradouro não apresentou qualquer elemento que nos permitisse afirmar, ao criar o carro, que estava mal-intencionado ou movido por anti-semitismo. Ao contrário.
Mas, de volta aos significados do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, considero urgente a reflexão de um aspecto: a censura à voz de judeus e judias que se sentiram violentados(as). Devemos
entender o que está em jogo, quando os debates quase tornaram irrelevante a voz dos(as) que se pronunciaram primeiro; quase esqueceram da dor que diferentes mulheres e homens, de diferentes idades, neste início do século
21, sentiam diante da possibilidade alegórica do Holocausto carnavalesco.
Acredito ter sido em nome do presente, da necessidade de reflexão urgente, que a Federação Israelita se pronunciou. Da atualidade de parte da comunidade judaica do Rio de Janeiro (e não só dela). E, principalmente, em nome da caminhada que nos devemos em direção ao futuro. Um futuro capaz de fazer com que censura queira somente dizer limite para uma sociedade que acredita que vale tudo. Limite descrito como sinônimo de ética. De respeito. De abertura para o outro.
A dor narrada por minha colega de trabalho em Criola (que é judia) não trazia imagens do passado. Ela não esteve lá. Falava de sentimentos de agora. De uma lição que precisamos aprender em nome de algo além do consumo desenfreado, midiático e hedonista da dor dos outros, como descreveu, em ótimo livro, Susan Sontag.
E isto vale para o Brasil, para a África do Sul, para os Estados Unidos, para o mundo. É sempre bom nos perguntarmos se foi ou não o racismo que fez com que vozes como a de minha colega de trabalho, do presidente da Federação Israelita e de muitos(as) outros(as) judeus e judias tenham sido desprezadas por uma parte significativa das pessoas de boa intenção. Assim, talvez, possamos (ou devamos) compreender e expandir os significados do 21 de março por todos os dias.
Jurema Werneck
Coordenadora de Criola
Publicado em 7/3/2008.
fonte: IBASE
http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=2240
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